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Do Passado Violado ao Presente Criminalizado: A Força que Reivindica a Vida

  • Foto do escritor: Renata Mendes
    Renata Mendes
  • 23 de mai.
  • 4 min de leitura


Foto da autora tirada durante o toré, na cerimônia de abertura da 25 Assembleia Xukuru de Ororubá. Maio/2025.
Foto da autora tirada durante o toré, na cerimônia de abertura da 25 Assembleia Xukuru de Ororubá. Maio/2025.

Tive a oportunidade de participar nesta semana da 25ª Assembleia do Povo Xukuru do Ororubá, com o tema: “Do passado violado ao presente criminalizado, resistiremos.” O evento teve caráter deliberativo, com tomada de decisões importantes para o povo Xukuru, mas foi também — e talvez principalmente — um espaço de formação política, que reverberou de forma profunda em mim.

Vivenciei ali uma das experiências mais intensas e transformadoras da minha vida. Vinda de um campo de estudo que se debruça sobre conflitos, violências e possibilidades de construção da paz, estou acostumada a analisar diferentes formas de força. Na maioria das vezes, essa força é apresentada como dominação: aquela que busca submeter, silenciar, destruir o que é diferente. Uma força que nasce do medo e alimenta ciclos de violência.

 Contudo, o que encontrei nos dias vividos na serra do Ororubá foi algo completamente distinto: uma força baseada na ancestralidade, na espiritualidade, na relação com a natureza, na coletividade e na continuidade da vida. Uma força que não se impõe pela destruição, mas que se sustenta pelo cuidado, pela memória e pela resistência.


A Ministra dos povos indigenas, Sonia Guajajara, com o cacique Marcos Xukuru.
A Ministra dos povos indigenas, Sonia Guajajara, com o cacique Marcos Xukuru.

A força como fundamento da transformação 


Nos estudos da paz e do conflito, é comum pensarmos a força sob dois paradigmas principais: o da violência (força como dominação e destruição) e o da resistência (força como contraposição). Mas há uma terceira dimensão, mais sutil, porém profundamente transformadora: a força como sustentação da vida, como capacidade de manter viva uma cultura, uma memória, uma espiritualidade mesmo diante de séculos de ataques.


Essa foi a força que presenciei entre o povo Xukuru. Uma força que canta, dança, cozinha, conta histórias, celebra o sagrado, reivindica o território — e tudo isso como forma de luta. O tore, a partilha da comida, a pajelança e as falas são expressões de força política, espiritual e cultural. Essa força não se limita à resistência; ela propõe outra lógica de existência, de organização social e de relação com o mundo.


 A dimensão política da espiritualidade


 Muitas vezes, em análises acadêmicas sobre conflitos, a espiritualidade aparece como um elemento secundário, ou até mesmo ausente. Mas no território Xukuru, ela é o coração da vida coletiva. Os encantados, os ancestrais, os saberes sagrados orientam as decisões políticas e a maneira de estar no mundo. O modo de governar Xukuru não dissocia o político do espiritual, nem o sagrado do cotidiano.


Essa visão amplia radicalmente o que entendemos por força. É uma força que não se manifesta em armas, mas em invocações na pajelança, em pisadas firmes na tore, na reverência à terra, no respeito aos que antecederam e no cuidado com os vivos. E essa forma de força, longe de ser passiva, é profundamente ativa: ela mantém viva uma sociedade organizada mesmo diante de séculos de criminalização.


Durante a Assembleia, na mesa de discussão.
Durante a Assembleia, na mesa de discussão.

A criminalização da organização


Como bem disse o indigenista Saulo Feitosa, a violência contra o povo Xukuru é histórica, e um dos seus principais agentes é o Estado. Essa violência se manifesta de muitas formas: na negação de direitos territoriais, na omissão diante de ameaças e assassinatos, na intervenção desrespeitosa aos rituais sagrados — como no caso da exumação do corpo do cacique Xicão — e, principalmente, na tentativa constante de criminalizar a organização política e social indígena.


A criminalização é uma estratégia recorrente dos sistemas de poder contra qualquer sociedade que proponha outra lógica de vida e queira ocupar lugares de poder. A sociedade hegemônica teme o que não compreende — e tenta deslegitimar aquilo que não pode controlar. Por isso, mobiliza suas forças políticas, jurídicas, policiais, econômicas, religiosas e midiáticas para tentar dissolver os vínculos coletivos, enfraquecer as lideranças e apagar os modos de vida que desafiam a supremacia branca e capitalista.


Mas a Assembleia mostrou o oposto: o povo Xukuru segue vivo, presente, organizado, dialogando, formado — e formando outras pessoas. A educação política ali presente não era apenas para os indígenas, mas também para não indígenas, que tivemos a honra de ser recebidos com tamanha hospitalidade, respeito e generosidade.

 

Força é cuidado

 

Uma das lições mais impactantes para mim foi entender que, naquele contexto, força não é o oposto de fragilidade — é o oposto da indiferença. Força é acolher, é dividir alimentos, é dar espaço à escuta e diálogo, é sustentar coletivamente o trauma e seguir em frente. Em muitos momentos, me emocionei ao ver a profundidade dos relatos, a força com que a dor foi compartilhada, sem perder o orgulho de ser Xukuru, a fé e a alegria.

 

Os professores e professoras foram reconhecidos como pilares da continuidade do modo de viver Xukuru. Isso me tocou profundamente, porque em muitos outros contextos, inclusive urbanos, esse reconhecimento é escasso. Ali, o saber é valorizado, especialmente aquele transmitido de forma oral, nas conversas entre gerações, nas histórias que se contam ao pé da serra.


Os chefes das aldeias Xukuros reunidos.
Os chefes das aldeias Xukuros reunidos.

 Acima do medo, a coragem!


Volto dessa Assembleia com uma convicção renovada: é possível existir de outra forma. É possível resistir com dignidade, cuidar com coragem e lutar com amor. Essa é a força que transforma — e é essa força que os estudos da paz e do conflito podem se beneficiar e ampliar a epistemologia sobre o que é paz na perspectiva indígena brasileira.


Não se trata apenas de analisar a violência, mas de compreender as potências da vida que seguem resistindo a ela. Porque, ao fim, a paz verdadeira não será construída a partir da imposição de silêncios, mas do reconhecimento das vozes que historicamente foram silenciadas.

 

Resistiremos. 

Com força, com memória, com coragem. 


Foi isso que aprendi com o povo Xukuru de Ororuba.

 
 
 

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