Do Passado Violado ao Presente Criminalizado: A Força que Reivindica a Vida
- Renata Mendes
- 23 de mai.
- 4 min de leitura

Tive a oportunidade de participar nesta semana da 25ª Assembleia do Povo Xukuru do Ororubá, com o tema: “Do passado violado ao presente criminalizado, resistiremos.” O evento teve caráter deliberativo, com tomada de decisões importantes para o povo Xukuru, mas foi também — e talvez principalmente — um espaço de formação política, que reverberou de forma profunda em mim.
Vivenciei ali uma das experiências mais intensas e transformadoras da minha vida. Vinda de um campo de estudo que se debruça sobre conflitos, violências e possibilidades de construção da paz, estou acostumada a analisar diferentes formas de força. Na maioria das vezes, essa força é apresentada como dominação: aquela que busca submeter, silenciar, destruir o que é diferente. Uma força que nasce do medo e alimenta ciclos de violência.
Contudo, o que encontrei nos dias vividos na serra do Ororubá foi algo completamente distinto: uma força baseada na ancestralidade, na espiritualidade, na relação com a natureza, na coletividade e na continuidade da vida. Uma força que não se impõe pela destruição, mas que se sustenta pelo cuidado, pela memória e pela resistência.

A força como fundamento da transformação
Nos estudos da paz e do conflito, é comum pensarmos a força sob dois paradigmas principais: o da violência (força como dominação e destruição) e o da resistência (força como contraposição). Mas há uma terceira dimensão, mais sutil, porém profundamente transformadora: a força como sustentação da vida, como capacidade de manter viva uma cultura, uma memória, uma espiritualidade mesmo diante de séculos de ataques.
Essa foi a força que presenciei entre o povo Xukuru. Uma força que canta, dança, cozinha, conta histórias, celebra o sagrado, reivindica o território — e tudo isso como forma de luta. O tore, a partilha da comida, a pajelança e as falas são expressões de força política, espiritual e cultural. Essa força não se limita à resistência; ela propõe outra lógica de existência, de organização social e de relação com o mundo.
A dimensão política da espiritualidade
Muitas vezes, em análises acadêmicas sobre conflitos, a espiritualidade aparece como um elemento secundário, ou até mesmo ausente. Mas no território Xukuru, ela é o coração da vida coletiva. Os encantados, os ancestrais, os saberes sagrados orientam as decisões políticas e a maneira de estar no mundo. O modo de governar Xukuru não dissocia o político do espiritual, nem o sagrado do cotidiano.
Essa visão amplia radicalmente o que entendemos por força. É uma força que não se manifesta em armas, mas em invocações na pajelança, em pisadas firmes na tore, na reverência à terra, no respeito aos que antecederam e no cuidado com os vivos. E essa forma de força, longe de ser passiva, é profundamente ativa: ela mantém viva uma sociedade organizada mesmo diante de séculos de criminalização.

A criminalização da organização
Como bem disse o indigenista Saulo Feitosa, a violência contra o povo Xukuru é histórica, e um dos seus principais agentes é o Estado. Essa violência se manifesta de muitas formas: na negação de direitos territoriais, na omissão diante de ameaças e assassinatos, na intervenção desrespeitosa aos rituais sagrados — como no caso da exumação do corpo do cacique Xicão — e, principalmente, na tentativa constante de criminalizar a organização política e social indígena.
A criminalização é uma estratégia recorrente dos sistemas de poder contra qualquer sociedade que proponha outra lógica de vida e queira ocupar lugares de poder. A sociedade hegemônica teme o que não compreende — e tenta deslegitimar aquilo que não pode controlar. Por isso, mobiliza suas forças políticas, jurídicas, policiais, econômicas, religiosas e midiáticas para tentar dissolver os vínculos coletivos, enfraquecer as lideranças e apagar os modos de vida que desafiam a supremacia branca e capitalista.
Mas a Assembleia mostrou o oposto: o povo Xukuru segue vivo, presente, organizado, dialogando, formado — e formando outras pessoas. A educação política ali presente não era apenas para os indígenas, mas também para não indígenas, que tivemos a honra de ser recebidos com tamanha hospitalidade, respeito e generosidade.
Força é cuidado
Uma das lições mais impactantes para mim foi entender que, naquele contexto, força não é o oposto de fragilidade — é o oposto da indiferença. Força é acolher, é dividir alimentos, é dar espaço à escuta e diálogo, é sustentar coletivamente o trauma e seguir em frente. Em muitos momentos, me emocionei ao ver a profundidade dos relatos, a força com que a dor foi compartilhada, sem perder o orgulho de ser Xukuru, a fé e a alegria.
Os professores e professoras foram reconhecidos como pilares da continuidade do modo de viver Xukuru. Isso me tocou profundamente, porque em muitos outros contextos, inclusive urbanos, esse reconhecimento é escasso. Ali, o saber é valorizado, especialmente aquele transmitido de forma oral, nas conversas entre gerações, nas histórias que se contam ao pé da serra.

Acima do medo, a coragem!
Volto dessa Assembleia com uma convicção renovada: é possível existir de outra forma. É possível resistir com dignidade, cuidar com coragem e lutar com amor. Essa é a força que transforma — e é essa força que os estudos da paz e do conflito podem se beneficiar e ampliar a epistemologia sobre o que é paz na perspectiva indígena brasileira.
Não se trata apenas de analisar a violência, mas de compreender as potências da vida que seguem resistindo a ela. Porque, ao fim, a paz verdadeira não será construída a partir da imposição de silêncios, mas do reconhecimento das vozes que historicamente foram silenciadas.
Resistiremos.
Com força, com memória, com coragem.
Foi isso que aprendi com o povo Xukuru de Ororuba.
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